Ao
Anjo Gabriel
gabriel@org.céus
Meu caro Gabriel,
Desculpe me a petulância desse gesto, mas eu queria conversar um pouco. Pode até ser que esta nota demore a chegar às suas mãos, em meio aos tantos e mails que a sua secretária precisa decifrar, catalogar e encaminhar.
As coisas que eu queria compartilhar não devem ser nenhuma novidade para você e os outros companheiros daí. Mas eu tenho essa necessidade de conversar um pouco. E se você quiser colocar esta nota na rede de vocês, fique à vontade.
Em primeiro lugar eu queria manifestar a minha gratidão pela forma como o Pai têm olhado para a gente nesses últimos tempos. Com o abraço e o inspiração dele, tem, como se diz por aqui, chovido na nossa roça. Tantas e tão diferentes igrejas têm crescido de uma forma muito bonita. É gente simples ou até meio sofisticada chegando ao evangelho das mais diferentes maneiras. É igreja nascendo em tudo que é canto, e alguns dos nossos irmãos mais velhos estão vislumbrados com essas igrejas enormes e barulhenta, com muita gente e muito som. Coisas desconhecidas poucas décadas atrás.
Como você sabe, essa assim chamada igreja evangélica tem, não apenas crescido, mas diversificado o seu ministério de uma forma impressionante. Até bloco de carnaval composto de crente e em ritmo de evangelização já tem. Hoje tem crente em tudo que é lugar; de engraxate a doutor. Operário e empresário. Artista e político. E é muita gente nova procurando o evangelho e batendo à porta de igrejas dos mais variados formatos.
Mas há algumas coisas, Gabriel, que estão me entristecendo e preocupando. Não porque a igreja seja nossa, pois, como você bem sabe, ela é de Jesus; a gente só tem o privilégio de estar nela. Mas também é verdade que nós devemos ter zelo por ela. Como diz a Palavra, que você deve conhecer, nós temos co-responsabilidade na vida e saúde dela. A igreja é uma dessas coisas arriscadas e bonitas erguidas por Deus e através das quais ele nos deixa participar nas coisas do seu Reino.
Eu queria mesmo é expressar a minha tristeza com algumas coisas que vejo acontecendo por aqui. Falo isso não porque eu saiba melhor. Você sabe das minhas lutas e contradições e me conhece o suficiente para saber que isso não é verdade. Aliás, a Palavra nos ensina que quem pensa estar em pé, olhe para que não caia (I Coríntios 10.12). Mas nem por isso a indiferença pode ser uma das nossas virtudes. E sempre precisamos nos ajudar mutuamente e estar atentos para as tentações que estão no nosso caminho.
Até parece que algumas arapucas o poder e o sexo, por exemplo são, quanto mais conhecidas, ainda mais capciosas. A gente as conhece da própria história da igreja e sempre de novo acaba se tornando vítima delas. Aliás, a própria Palavra fala que essas tentações estavam presentes desde o início. Assim, o inimigo nem precisa inovar muito (aliás, este nem é o seu forte); ele só disfarça e põe cara nova nas suas velhas artimanhas. Eu poderia compartilhar algumas das minhas preocupações nestas áreas:
O lambuzamento com o poder:
Como você não come dessas coisas, provavelmente não conheça o melado. Mas aqui entre nós temos um dito que diz que quem come melado pela primeira vez, se lambuza. Parece que é isso que está acontecendo com a gente na questão do poder, o que é expresso tão claramente no poder político. Quando foi que tivemos tantos evangélicos, por exemplo, ocupando um mandato político na nossa capital federal, lá em Brasília? Mas essa mesma presença parece ser politicamente tão fraca, ideologicamente tão confusa e utilitariamente tão forte! Eles, afinal, até não parecem querer construir o país. Por vezes parecem querer construir as suas igrejas, material e denominacionalmente falando. O mandato dessa legislatura política apenas começou e já tem deputado mudando adoidadamente de partido, se você me perdoar o termo. E os evangélicos são campeões nesse tipo de mudança. Eles parecem não ter consistência política, sem a qual é tão difícil construir partidos claros e fortes e que dêem estrutura política para uma nação.
Vocês também se preocupam com isso? Este assunto já entrou na agenda de alguma das reuniões de vocês? Afinal, o povo de Deus parece ter tanto problema com o poder no decorrer da história! Da convivência da igreja com o poder, nos primeiros séculos se dizia que quando a igreja chega ao poder, ela perde o poder. Será que isso precisa se repetir por aqui?
Eu creio que o povo de Deus precisa participar da estrutura política e não ficar fora dela. Mas precisa fazê lo na perspectiva do grão de mostarda, como o Mestre nos ensinou. Dá para entender isso?
A guerra da comunicação:
Perdoe me o uso da palavra guerra , que não deve ser comum entre vocês. Mas por aqui a comunicação não deixa de ser uma guerra; por espaço, por sobrevivência e pela atenção dos ouvintes e/ ou telespectadores. É preciso alcançar algum índice de audiência na competição pelos olhos e, depois, tem se que dar um jeito de ficar no ar. É claro que a gente precisa entrar no universo da comunicação. Afinal, o evangelho carece ser comunicado. Mas a forma como a gente o faz, também, é fundamental. Às vezes até me parece que a guerra da comunicação está para este final de século XX como as Cruzadas estavam para o século XIII. E as Cruzadas não foram uma boa coisa.
Será que você tem uma posição a esse respeito? É possível comunicar a essência do evangelho de Jesus por um meio e um contexto que “requer” suavidade, bem estar e estética? Porque a gente precisa entrar nessa luta por espaço e sobrevivência. A minha preocupação é que, no final das contas, o evangelho se transforme em mero artigo de marketing, onde ele acaba sendo aguado e transformado num produto qualquer, embora religioso. Afinal, a busca de audiência não pode transformar o evangelho, pois é este que deveria converter sua audiência.
A crise da família:
Como os registros de vocês atestam, o número de famílias desfeitas e unilateralmente constituídas está aumentando. Assim, o número de conflitos, de gente machucada e sozinha e de filhos sem os abraços de uma família constituída vem aumentando.
Tudo isso nós já sabemos, Gabriel. Mas o que me preocupa é que o número desses conflitos e dessas separações não é necessariamente menor entre o pessoal cristão. Ou seja, a separação está invadindo a igreja, que acaba sendo muito parecida com o mundo. É o mundo que parece estar penetrando na igreja, o que a destitui da centralidade da mensagem evangélica, que é a possibilidade da reconciliação, a realidade do perdão e a própria constituição da família como ninho de aconchego, solidez e formação para a vida.
O que me entristece ainda mais é quando líderes da igreja parecem não conseguir se desvencilhar dessa trama, tornando se protagonistas e vítimas dessa própria separação e produzindo um sofrimento enorme, tanto para si e suas famílias, como para a igreja e a própria sociedade. Eles, afinal, se tornam “modelos ao avesso” e desencadeiam um efeito cascata, tanto na separação matrimonial como no sofrimento e na credibilidade.
Tudo isso você já sabe e eu não preciso entrar em maiores detalhes. Mas eu precisava compartilhar da minha tristeza. Nem estou pedindo que você intermedie nada, pois essa não é a sua função. Você, por assim dizer, só agita as coisas de lá para cá (como Maria bem o experimentou) e não de cá para lá.
Eu queria dizer ainda que um dia chegarei aí e com isso quero assinalar que a tristeza não tem a última palavra. É Jesus que tem a última palavra e ele nos dá esperança e uma missão: a esperança de que a igreja é dele e está em suas mãos, e a missão de vestir a peregrinação da fé, sendo fiel ao evangelho, lutando contra a tentação e contando a história das maravilhas que o Senhor tem feito entre nós. (I Pedro 2.9). Pois você sabe que, apesar das tristezas desta hora, eu não consigo deixar de reconhecer e pronunciar que o nosso Pai tem sido muito bom conosco. E sinal dessa sua bondadeé a possibilidade do arrependimento, com a qual ele nos agracia. Afinal, é pela sua graça que celebramos a possibilidade de recomeçar. E a minha oração é que, pelas misericórdias de Deus, nós possamos trilhar esse caminho.
Obrigado pela paciência. E, pra você, um abraço bem brasileiro.
Publicado originalmente na Revista Ultimato.
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