“E suscitou-se entre eles uma discussão sobre qual deles seria o maior. Mas Jesus, percebendo o pensamento de seus corações, tomou uma criança, pô-la junto de si, e disse-lhes: Qualquer que receber esta criança em meu nome, a mim me recebe; e qualquer que receber a mim, recebe aquele que me enviou; pois aquele que entre vós todos é o menor, esse é grande”.
(Lc. 9.46-48)
Há coisa que não são muitos fáceis de serem entendidas. Não por elas serem difíceis, mas por serem complexas. Assim é com o Reino de Deus. Entendê-lo parece ser bastante fácil. Vivê-lo acaba sendo muito difícil. Completo, nós dizemos, invocando uma espécie de desculpa.
Essa dificuldade Jesus já teve com os discípulos. Para que eles escutassem o que ele tinha a dizer parecia não ser tão difícil, mas compreendê-lo e aceitá-lo parecia impossível. Complexo, diríamos.
Ao falar sobre o reino de Deus acontece justamente isso. Especialmente quando Jesus relaciona esse Reino com os valores de vida dos próprios discípulos. A sua mentalidade, o seu jeito de ver as coisas. O sonho que eles tinham para si mesmos.
Muitas vezes Jesus falava através de parábolas, sinais e imagens. Ao falar, portanto, sobre hierarquia e estilo de vida ele coloca sobre a mesa uma criança e faz dela o ponto de referência quanto à aceitação do seu Reino.
“Em verdade vos digo: Quem não receber o reino de Deus como uma criança, de maneira alguma entrará nele”. (Lc 18.17)
A ilógica lógica do reino de Deus
O evangelho de Lucas é, como sabemos, o evangelho do Reino de Deus. Um Reino que se corporifica na pessoa de Jesus e parece colocar as coisas de cabeça para baixo, priorizando os mais fracos e desprovidos. Um Reino que é simultaneamente promessa para o pobre e denúncia de injustiça impetrada pelo opressor e da riqueza mal adquirida e egoisticamente administrada pelo rico. Um Reino que denuncia a lógica do poder hierárquico - de cima para baixo - e se materializa na perspectiva daquele que não tem, não sabe e não pode.
Ademais, este Reino se materializa na pessoa de alguém que insiste em falar na cruz e instrumentaliza não apenas pessoas que aparentemente, não têm o pedigree adequado para a função mas que, por sua vez, também são convidadas e desafiadas a assumirem a cruz: “Se alguém quer vir após mim, a sim mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me”. (LC. 9. 23)
Assumir esta cruz significa não somente enfrentar e ser vítima da fúria de Herodes, mas também decidir não querer ser “grande”, como os “Herodes” do mundo e os “Caifás” do templo; assumindo a menoridade: “porque aquele que entre vós for o menor de todos, esse é que é grande”. (Lc. 9.48)
Mergulhar no universo da prioridade do Reino de Deus é, como sabemos, extremamente complicado e desafiador. Não é à toa que o nosso nome também acaba sendo Herodes. Gostamos de ser e poder. Assumir a cruz e decidir ser menor é o maior dos desafios, como o suor de sangue de Jesus no Getsêmani o deixa transparecer com assustadora clareza.
Por vezes, decidimos denunciar a injustiça e nos engajar na luta em favor do pobre. Mas fazemo-lo, naturalmente, na perspectiva do irmão maior, que vem a se constituir numa das grandes tentações da própria Visão Mundial. O convite evangélico para a vivência e liderança cristã, no entanto, é para a relativização do poder, saber e ser.
Esta é, assim me parece, uma das dimensões, mais difíceis de serem assumidas e vividas neste momento da vida da igreja no nosso continente, em que estamos fascinados com o crescimento e a visibilidade que advém dessa experiência. O mercado, afinal, está a exigir uma igreja e uma liderança forte, impressionante e visível. Uma igreja que “saiba o que quer”, tenha boa comunicação, se movimente com desenvoltura e tenha acentuada capacidade de mobilização; gerenciando para o crescimento, a influência e o sucesso. Mas Jesus, diz Lucas: “sabendo o que lhes passava no coração, tomou uma criança, colocou-a junto de si, e lhes disse...”
Como é difícil ver Jesus desmontar os nossos castelos, humilhar os nossos sonhos e voltar os nossos olhos para “uma criança” simples e destituída de poder e visibilidade. E tudo se decide na relação com a criança; no jeito de olhar para ela, na forma como a abraçamos e no estilo como a servimos: “Quem recebe esta criança em meu nome, a mim me recebe; e quem receber a mim, recebe aquele que me enviar; porque aquele que entre vós for o menos de todos, esse é que é grande”. (v. 48)
Essas coisas do reino de Deus são realmente complexas, não é verdade? E ainda vemos essa criança nos olhar nos olhos e sorrindo dizer “eu não acho”.
Texto publicado no Jornal Transformação - Março 1999. Ano XI. No 1
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