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Foto do escritorValdir Steuernagel

A criação, o jubileu e o futuro

Depois de uma longa viagem, finalmente cheguei ao Aeroporto de Kilimanjaro. O nome deste pequeno aeroporto, destino cobiçado de gente do mundo todo, deve-se à mais famosa montanha da África, localizada aqui na Tanzânia. Pessoas de todas as idades afluem para cá atraídas pelo sonho de escalar o imponente Kilimanjaro e desfrutar os safáris que prometem livre contato com a natureza e com animais selvagens do belo continente africano.


Desta vez vou ficar bem pouco; nem vai dar para ensaiar os primeiros passos para a famosa escalada, como fiz noutra ocasião. Mas apesar da beleza incontestável do lugar, reconheço que escalar o Kilimanjaro e expor-se à vida selvagem daqui virou uma indústria que explora a natureza, raramente a preserva e coloca o produto dessa exploração nas mãos de poucos. Afinal, esta terra de beleza ímpar é também a África pobre cujos índices de distribuição de riqueza, bem-estar das crianças e preservação dos recursos naturais são os mais injustos do planeta.


Hoje, ao continuar esta série, eu falo da África porque é daqui que escrevo. Mas certamente poderia dizer a mesma coisa do Brasil. E a pergunta é a mesma: o que diz a Bíblia sobre a bela criação de Deus e a exploração dos seus potenciais e recursos? Qual é a relação entre a pobreza e injustiça que afeta a tantos e a riqueza que está nas mãos de tão poucos? Por que essa nossa capacidade de explorar e destruir a natureza ao ponto de vê-la morrer, como o denota a preocupante mudança climática?

Há no início de Gênesis dois momentos que nos ajudam a entender a natureza humana e a viver no mundo de hoje. Primeiro, vemos Deus criando um mundo pleno de beleza, abundante em recursos e dotado de limites. Nele há lugar, o necessário e o suficiente para todos. Nesse mundo nós, suas criaturas, somos chamados a participar do gerenciamento da natureza criada e a viver em comunhão com Deus e uns com os outros.


Mas logo adiante nos deparamos com a desconexão e a desintegração. A relação com Deus é rompida pela incapacidade humana de obedecer e de conviver com limites e a vida passa a dar-se num ambiente hostil, de conflito e luta pela sobrevivência. A relação humana foi igualmente rompida e o outro passa a ser visto como inimigo, resultando no assassinato de um irmão pelo outro. Agora a vida já não é a mesma e todas as relações foram afetadas: com Deus, com o outro e com a natureza. E assim vivemos até hoje. Continuamos usufruindo a beleza do Kilimanjaro enquanto ele vai sendo explorado e caminhando para a destruição.


No entanto, convém não esquecer que logo no início de Gênesis também se declara em alto e bom som que Deus não nos abandona e não desiste de nos amar nem de prover caminhos de reconcilição, reconstrução e convivência humana. Um dos sinais da persistência divina encontra-se no princípio do jubileu, que aponta para o perdão, a reparação e a convivência mútua. Vale a pena atentarmos para esta proposta, desenhada especialmente no capítulo 25 do livro de Levítico.


Primeiro Deus ordena um ano de descanso para a terra, com acesso coletivo a tudo que ela produzir. O texto diz assim: Durante seis anos semeiem as suas lavouras, aparem as sua vinhas e façam a colheita de suas plantações. Mas no sétimo ano a terra terá um sábado de descanso, um sábado dedicado ao Senhor. Não semeiem as suas lavouras nem aparem as suas vinhas (Lv 25: 3-4). Todos, e em especial os pobres, se sustentarão do que a terra produzir expontaneamente: Assim os pobres do povo poderão comer o que crescer por si (Êx 23:11).


Em seguida propõe-se um ano de jubileu, quando a terra deverá ser devolvida ao seu dono original. Depois de quarenta e nove anos, é proclamada uma espécie de anistia que possibilite um novo começo. A proposta é complexa e, mesmo tendo as marcas do seu tempo e contexto, o princípio é claro: A terra não poderá ser vendida definitivamente, porque ela é minha, e vocês são apenas estrangeiros e imigrantes (Lv 25:23), diz o Senhor. Se alguém empobrecer e necessitar vender sua propriedade, ou parte dela, o direito ao resgate deverá ser mantido; e, caso isso não seja possível, ela será devolvida no jubileu, e ele então poderá voltar para a sua propriedade (v.28).


A história do povo de Israel atesta sua grande dificuldade de implementar a proposta do jubileu. Mas ela não foi esquecida, e volta à tona na vida e ministério de Jesus. Ele inicia o seu ministério público assumindo o compromisso de cumprir a promessa de Deus, declarando-se o Messias que veio libertar o seu povo da opressão e exploração e anunciar um novo tempo em que Deus faria novas todas as coisas, possibilitando a todos e à própria criação gozarem a vida em abundância que só ele traz.


O Espírito do Senhor está sobre mim,

porque ele me ungiu para pregar as boas novas aos pobres.

Ele me enviou para proclamar liberdade aos presos

e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos

e proclamar o ano da graça do Senhor. (Lc 4:18-19)


E após ler a profecia de Isaías, anunciou: Hoje se cumpriu a Escritura que vocês acabaram de ouvir (v. 21).


Desta palavra vivemos até hoje. Como comunidade cristã e segundo o testemunho da Escritura, somos continuamente ungidos e guiados pelo Espírito Santo a buscar caminhos de obediência que levem à convivência mútua. Ainda há graça e esperança para mim e para você, para o Kilimanjaro e para as nossas cidades, para os nossos filhos e netos, pois o Deus da criação não desiste de nós nem de fazer novas todas as coisas.


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Publicado originalmente na Revista Ultimato, ed. 346


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